Este artigo foi concebido como um passeio cronológico ilustrado. As fotografias originais nós tiramos no Museu da Música de Málaga e aparecem ao longo do texto.
Introdução: Por que a humanidade faz música?
Se a música tem uma história, precisamos perguntar qual sua origem e por que ela existe afinal. Se formos pensar, a música é uma das poucas atividades realmente universais: toda sociedade canta, dança ou constrói instrumentos. Pesquisas em cognição sugerem que o fazer musical emerge da combinação de três benefícios:
- Coesão social: cantar em grupo sincroniza respiração, liberta ocitocina e fortalece laços;
- Comunicação emocional: contorno melódico e ritmo codificam estados internos antes mesmo do desenvolvimento da linguagem;
- Exercício cognitivo: coordenar batidas e tons exige memória de trabalho e predição temporal, habilidades úteis para qualquer tarefa.
Ou seja, ao fazer música, estamos praticando habilidades essenciais que nos caracterizam como humanos.
A arqueologia acrescenta a esse quadro evidências palpáveis: as primeiras flautas conhecidas, feitas de osso de urso das cavernas, são tão antigas quanto as primeiras comunidades de humanos. Se já havia instrumentos tão sofisticados nessa época, a prática musical é seguramente mais antiga que a escrita.
Classificando os instrumentos
Para falarmos de história da música, vamos mostrar um inventário que vai desde a sonaja paleolítica até o piano digital. Talvez você repare em algumas imagens os seguintes termos (que usam a classificação Sachs–Hornbostel):
- Instrumentos Idiófonos: o som vem diretamente do corpo vibrando, sem nenhum outro recurso (ex.: xilofones, triângulos, pratos, sinos, etc.)
- Membranofones: a vibração da membrana é a responsável pelo som (ex.: tambor)
- Cordófonos: as cordas são responsáveis pelo som (ex.: violão)
- Aerófonos: a coluna de ar modula o som (ex.: flauta, tuba)
- Eletrofones: som proveniente de fonte eletrônica (ex.: piano digital)
Pré‑história
As sonajas (chocalhos) e pedras ritmadas provavelmente antecedem qualquer tentativa de escala musical. Os materiais usados incluíam crânios, ossos, pedra, sementes e madeira:




O arco musical, ancestral da harpa, representa o momento em que vibração de corda passou a ser explorada de modo controlado:

A Lira Kessar, que é um pouco assustadora, foi um dos primeiros experimentos com múltiplas cordas:

Já a flauta de osso indica domínio de embocadura e do conceito de coluna de ar:

Pentatonismo primitivo: Estudos com réplicas de flautas paleolíticas revelam que seus orifícios costumam se alinhar a intervalos hoje reconhecidos como pentatônicos; isso sugere uma preferência cognitiva por relações de frequência simples, explicável pelas séries harmônicas. A escala pentatônica foi uma das primeiras desenvolvidas pela humanidade em diferentes culturas.
Antiguidade (3000 a.C. – 476 d.C.)
Do Egito vieram harpas angulares; da Mesopotâmia, liras; na Grécia floresceram a aulos e os modos harmônicos que inspiraram Pitágoras. Mas podemos também olhar além do Mediterrâneo encontrando outros instrumentos antigos, menos conhecidos:
Chau gong: datado da dinastia Han Ocidental (202 a.C.–9 d.C.), era tocado em cortejos oficiais para “abrir caminho”, uma espécie de sirene imperial:

Veena Saraswati: os antepassados da atual Saraswati Veena são descritos em tratados sânscritos desde c. 800 a.C.; o design atual fixa‑se no séc. XVI; seu traste curvo permite gamakas (ornamentos microtonais):

Ruan: alaúde chinês de caixa circular, introduzido na dinastia Qin e ainda usado em orquestras de ópera de Pequim:

Idade Média (séc. V – XV)
A queda de Roma desloca o eixo musical para mosteiros. Canto gregoriano unifica repertórios litúrgicos e, para preservá‑lo, surgem as primeiras notações de partitura, que na época ainda eram em tetragrama (séc. X–XIII).
Carraca, instrumento de percussão da época, produz um som parecido com um estalido ou “crepitação” ao girar. Bastante usada em tradições populares, festividades religiosas e folclóricas, especialmente durante a Semana Santa, seu som é seco e penetrante, destacando-se pela facilidade de execução e pelo timbre singular:

A bandurria, instrumento de cordas dedilhadas (semelhante ao bandolim), é muito tradicional na música espanhola e latino-americana, sendo utilizada em grupos folclóricos e na música típica regional, principalmente em estilos como a jota e o fandango:

A zanfona (“hurdy‑gurdy”) põe em cena a primeira máquina de fricção contínua: uma roda resinada faz as vezes do arco, enquanto teclas alteram a afinação. Antecipava o princípio de fricção contínua que, no barroco, culminará nos órgãos de manivela e no violoncelo. É protótipo direto do teclado‑cordofone e dos mecanismos automáticos da Renascença:

Já o Vaso silbador Moche é um pequeno aerofone cerâmico ritual que produz assobios quando se sopra pelo bocal ou se agita a água no interior. O efeito de “canto de pássaros” era associado a cerimônias funerárias. Mostra que, fora da Europa, já se exploravam princípios de pressão de ar/água para criar timbres contínuos, sem qualquer relação com a notação gregoriana que surgia nos mosteiros medievais:

Renascimento (1400 – 1600)
Com a imprensa, a música escapa do scriptório. Em 1501, Ottaviano Petrucci lança Harmonice Musices Odhecaton – primeira coletânea impressa com múltiplas vozes. A circulação de partituras acelera difusão musical. Instrumentalmente, alaúdes evoluem para bandolins e guitarras renascentistas (guitarra-lira):


Qual o status da teoria musical nessa época? A polifonia renascentista levanta debates sobre afinações. Como afinar intervalos “perfeitos” quando três vozes independentes soam simultâneas? Essa tensão abriria caminho para o cravo temperado de Bach.
Barroco (1600 – 1750)
Ópera, concerto grosso e baixo contínuo definem o gosto setecentista. O clarinete nasce pela mão de Johann Denner, ampliando alcance harmônico da família de madeiras. Flautas transversais ganham chave adicional, habilitando a escala cromática que Vivaldi e Telemann exploram:

Classicismo & Romantismo (1750 – 1910)
A forma‑sonata cristaliza‑se em Haydn e Mozart; Beethoven expande dinâmica graças ao piano Érard, primeiro a usar duplo escape e cordoamento cruzado. O square piano Clementi democratiza o instrumento em salões domésticos:


Instrumentos de metal evoluem do sistema de correias para válvulas rotativas: a tuba moderna surge em 1835; trompas ganham extensões cromáticas com crooks:
Revolução Industrial & Música Mecânica (1830 – 1900)
Os espaços públicos clamam por entretenimento autônomo. O organillo de manivela toca discos de metal perfurados; a pianola lê rolos de papel. Cada furo corresponde a notas pré‑programadas, antepassados diretos do MIDI:



Curiosidade: Um rolo de pianola típico continha cerca de 1500 perfurações, o equivalente a 4 kB de dados musicais.
Da cera à fita – a era da gravação (1877 – 1955)
Thomas Edison patenteia o fonógrafo em 1877; é o primeiro aparelho a gravar e reproduzir som. A trilha mecânica em cilindro dá lugar ao disco plano (Berliner, 1887):

Após a Segunda Guerra, o formato reel‑to‑reel populariza‑se em estúdios; já o toca‑discos de 1955 coloca o vinil na sala de estar:

Cordas globais e a evolução da guitarra (1880 – hoje)
Com o blues, a guitarra de aço atravessa o Mississipi; o Dobro (cone metálico ressonador) aumenta projeção sem eletricidade:

No Pacífico, a lap‑steel havaiana inventa slides que migrarão para o country:

A guitarrón é o contrabaixo do mariachi:

Enquanto o charango, feito originalmente de casco de tatu, simboliza sincretismo andino‑ibérico:

Na década de 1970 surgem designs experimentais como a double‑neck de rock progressivo:

Percussão, timbre e música contemporânea ao redor do mundo
O vibrafone, patenteado em 1921 por Herman Winterhoff, traz motor elétrico que gira palhetas nos ressonadores, produzindo vibrato metálico essencial ao jazz moderno:

Na Java ocidental, o angklung (tubos de bambu afinados) é tocado coletivamente, cada músico sacudindo a nota‑símbolo de sua aldeia:

Já o tsuzumi japonês emprega pele tensionada com cordas, permitindo alterar a afinação apertando o laço durante a performance:

Eletrificação & Era Digital (1950 – 2025)
A partir dos anos 1950, captadores magnéticos transformam guitarras em símbolos do rock, enquanto sintetizadores inauguram eletrofones puros. O MIDI (1983) cria linguagem comum entre máquinas:

Música digital, streaming e IA
Hoje a distribuição dominada pelo streaming responde por mais da metade da receita fonográfica; em 2024 o setor gerou 29,6 bilhões de dólares, crescendo cerca de 5% ao ano, com 752 milhões de assinaturas pagas.
Ao mesmo tempo, a IA generativa questiona fronteiras entre composição humana e algorítmica, com plataformas como Suno e Udio ficando cada vez mais populares para geração de músicas com inteligência artificial.
O que a história da música nos ensina
Da sonaja paleolítica à inteligência artificial, a história da música tem algumas coisas em comum: tecnologia surge para servir à expressão e logo redefine a própria estética.
Inicialmente, a tecnologia consistia em explorar cada vez mais os materiais para produzir os sons. Depois, chips eletrônicos passaram a ditar o que ouvimos, com instrumentos mecânicos virando eletroacústicos, e com a indústria da gravação passando a ser 100% digital. Hoje, não apenas existe instrumento criado 100% com software, mas também música criada 100% com software.
Apesar das mudanças, a necessidade de compartilhar emoção por meio de melodia, harmonia e ritmo (definição de música) permanece a mesma. Nós precisamos de música, e a música precisa de nós.
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